sábado, 25 de janeiro de 2014


A maior ambição

Minha maior ambição
seria eu ser a natureza
pensando
-por que sou homem-
mas não pensando-(l)a 
Porque, enfim
quem está dentro
não pode pensar-se a si
senão ao contrário
-no espelho-

Assim as flores, as árvores e os pássaros
seriam eu .

Eu não as cheiraria
nem ouviria seus trinados.
Mas quem de mim se aproximasse
com os sons e os odores
se deleitaria.

E se esse alguém
natureza não fosse 
poderia eu deleitar-me
com os seus
perfumes e cantares
gozando-me assim
não ao contrário
como no espelho
mas no sentido directo
ainda que 
um tanto contraditoriamente
indirectamente .

Ó 
Quem dera apagar-me
no meio dos montes
no meio das pedras
no meio das árvores
no meio dos rios e dos mares
no meio dos ares
no meio dos outros animais
no meio do meio
e ouvir-me
sentir-me
cheirar-me
assim docemente
ainda que
um 
tanto 
contraditoriamente .

Geraldes de Carvalho



quinta-feira, 23 de janeiro de 2014


Há beijos
que nos nascem
como os filhos
que nascem
e não sabemos querê-los.
Há beijos
que a nossa boca recebe
como dádiva de um céu
que fique aqui à mão .
Há beijos
que nos sabem muito mal.
O mal da amargura
que com gozo
saboreamos .
E há beijos
que dormimos a sonhar
que são os beijos
que nos fizeram dormir
de que não vamos acordar.
Há beijos que sonhamos
no meio da música
de que gostamos
embora de quem seja
não saibamos.
E há beijos
que nos afloram os lábios
como a aragem
que sopra daquela margem.
Há beijos
que nos fazem palpitar
os lábios
como se estivéssemos a murmurar .
Há beijos que são raios de luz
que apagam nossos olhos
e outros que são mantos e sombras
estorvos e antolhos .
E há os beijos que brilham
como pensamentos claros
e outros tortuosos que só vemos
com os olhos fechados .
Que beijos esses são?
Se alguém me perguntar
só sei que lhe direi :
Os que me não dão, não.
Geraldes de Carvalho
V

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014




ANÂO

Era
não hera
não hera não.
Era se fora
anão não fora
não.

Se eu fora grande
um gigantão
já não
diria
era .
Não, não.

Diria sou
diria 
aqui
diria 
estou.
Mas não
não não
não não
não sou.

Pois sou anão
anão eu sou
anão
anão.

Geraldes de Carvalho

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014


A palavra amor 

O melhor do amor
-e falo da palavra-
é que rima com dor
e flor.

E à força de rimar
se vêm a amar
amor e dor
amor e flor
e flor e dor.

Se vêm a amar
-não falo das palavras-
porque as palavras criam
o que  dizer queriam

Esta palavra amor
cria
é bem de ver
o que quer
e o que quiser 
dizer.

E como 
dizer  amor
é o mesmo 
 que dizer 
criar
a palavra se torna
no ser
de amar :

-Amor e dor
amor e flor
e flor e dor-

 E tudo só
-imaginem-
por rimar.

Geraldes de Carvalho